O Dicionário Aurélio define “saga” como sendo uma prosa, uma lenda, uma narrativa, uma história lendária. Felicidade é isso: uma construção, uma ficção. É uma busca incessante por um estado pleno de realização, tranquilidade, e máximo bem-estar que, no nível terreno, simplesmente não existe. O que não é ruim. Pelo contrário, é muito bom. O que seria da vida dentro desse contexto de marasmo e plena satisfação, onde tudo é perfeito: céu sempre azul, água sempre fresca, comida sempre pronta, roupas sempre limpas, relacionamentos sempre harmoniosos, muito dinheiro no bolso e saúde para dar e vender? Seria um tédio.
Se você faz parte da geração Z (1997 a 2010) ou da geração Alpha (2010 a 2025), é possível que não conheça a música “Casinha Branca”, interpretada pelo cantor Peninha, que se popularizou por volta de 1979. O refrão dessa música, impregnado na mente das pessoas, diz assim: “Eu queria ter na vida simplesmente Um lugar de mato verde Pra plantar e pra colher Ter uma casinha branca de varanda Um quintal e uma janela Para ver o Sol nascer.”
Você consegue se imaginar em um lugar assim? Por quanto tempo? Mas é preciso considerar a poesia dessa música como um todo para entendermos a mensagem que ela expressa. As duas primeiras estrofes dizem: “Eu tenho andado tão sozinho ultimamente / Que nem vejo à minha frente / Nada que me dê prazer. / Sinto cada vez mais longe a felicidade, / Vendo em minha mocidade / Tanto sonho a perecer.”
Façamos uma breve análise dessa letra: parece expressar o sentimento de uma pessoa jovem – “vendo em minha mocidade”; com um forte senso de solidão – “eu tenho andado tão sozinho ultimamente”; que está desmotivada – “nada que me dê prazer” e desiludida – “tanto sonho a perecer”; por conta dessa realidade de vida, infeliz – “sinto cada vez mais longe a felicidade”.
As outras duas estrofes: “Às vezes saio a caminhar pela cidade / À procura de amizades, / Vou seguindo a multidão. / Mas eu me retraio olhando em cada rosto: / Cada um tem seu mistério, / Seu sofrer, sua ilusão.” A minha interpretação é a de uma pessoa que, por se sentir desmotivada, desiludida e infeliz, sai em busca da felicidade, observando e buscando em outras pessoas aquilo que elas também não têm: felicidade.
Felicidade é, de fato, um sentimento muito confuso. Todo mundo deseja, todo mundo procura, mas ninguém consegue encontrá-la. No filme “À Procura da Felicidade”, protagonizado pelo excelente ator Will Smith, tem uma frase emblemática, que diz: “Talvez a felicidade seja algo que só podemos perseguir, e talvez nunca possamos realmente tê-la.”. Isso me remete a uma outra frase que li no livro “Vivendo com Propósito”, escrito pelo pastor Ed René Kivitz, que diz: “Felicidade não é um lugar aonde se chega, mas um jeito de caminhar.”
Falar que a felicidade não existe, pelo menos em estado pleno de realização e satisfação no aqui e no agora, não significa ter uma visão pessimista da vida, como a do filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860), que disse que “A vida oscila, como um pêndulo, entre a dor e o tédio.”.
O que a Bíblia diz a respeito da felicidade? No livro de Eclesiastes, Salomão diz: “Então entendi que, nesta vida, tudo o que a pessoa pode fazer é procurar ser feliz e viver o melhor que puder” (Ec 3.12 – NTLH). No entanto, no capítulo anterior deixa bem claro que a felicidade não está baseada na tríade: dinheiro, poder e sexo. Deixa isso bem claro, quando diz: “Consegui tudo o que desejei. Não neguei a mim mesmo nenhum tipo de prazer. Eu me sentia feliz com o meu trabalho, e essa era a minha recompensa. Mas, quando pensei em todas as coisas que havia feito e no trabalho que tinha tido para consegui-las, compreendi que tudo aquilo era ilusão; não tinha nenhum proveito. Era como se eu estivesse correndo atrás do vento” (Ec 2.10-11). Muito interessante: correr atrás da felicidade é correr atrás do vento. Quem consegue pegar o vento? Quem consegue segurar a felicidade?
Para o apóstolo Paulo, felicidade é um estado de contentamento que não está diretamente associado às circunstâncias. Deixa isso claro na carta aos Filipenses, que foi escrita da prisão, quando diz: “Aprendi o segredo de me sentir contente em todo lugar e em qualquer situação, quer esteja alimentado ou com fome, quer tenha muito ou pouco. Com a força que Cristo me dá, posso enfrentar qualquer situação” (Fl 4.12-13 – NTLH). Deixa claro, portanto, que a felicidade não está diretamente atrelada as circunstâncias e oscilações da vida, mas sim a um estado de espírito que ele chama de contentamento.
Paulo dá um novo sentido a palavra contentamento, αὐτάρκεια (autarkeia), no grego, que era usada pelos estoicos como uma virtude que exaltava a independência emocional e a resistência às adversidades da vida. O sentido que Paulo dá a essa palavra é de uma força interior, que vem da presença de Cristo. Felicidade e contentamento não são sinônimos. Felicidade refere-se a um estado emocional de prazer e bem-estar, frequentemente associado a circunstâncias externas. Tratando-se assim, de um sentimento efêmero e situacional, que varia conforme as condições da vida, como sucesso, saúde, relacionamentos e realizações. O contentamento não está atrelado as circunstâncias externas, mas a condição interna, emocionalmente e espiritualmente falando.
Daí que ser crente não significa ser feliz em todos os momentos da vida. Jesus não morreu rindo, mas gritando: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 26.46). Como pastor e psicólogo recebo crentes que compartilham de uma dor acentuada por acharem que por confiarem em Deus precisam estar sempre sorrindo e felizes da vida. Fazem isso porque temem ouvir aquela expressão fatídica: “Você não pode se sentir assim. Você não confia em Deus?”.
A fé em Deus não é um amuleto da felicidade. Mas, uma força interna, uma força espiritual, que nos sustenta nos momentos mais difíceis da vida, impedindo que as circunstâncias determinem o nosso estado de ânimo. O contentamento, segundo Paulo, é fruto de uma vida centrada em Deus, que reconhece que todas as necessidades – físicas, emocionais e espirituais – são supridas por Ele.
Felicidade existe? Sim, existe! Mas ninguém vive feliz o tempo todo. E quem busca esse tipo de felicidade, não é feliz. Felicidade é como um tempero que faz com que saboreemos a vida no modo slow food, ou seja, sem pressa, mas com gosto, degustando aquele instante de prazer e felicidade, sem ficar pensando e com medo que vai passar mal. Tem gente que busca a felicidade, mas despreza os momentos felizes. Isso é patológico!
Felicidade plena, aqui e agora, não existe! Felicidade é uma saga. Mas isso, em hipótese alguma, tira o brilho da vida. Como bem cantava o poeta Gonzaguinha: “Viver e não ter a vergonha De ser feliz; / Cantar, e cantar, e cantar / A beleza de ser um eterno aprendiz. / Ah, meu Deus! / Eu sei, eu sei, / Que a vida devia ser bem melhor / e será! / Mas isso não impede / que eu repita: / É bonita, é bonita / E é bonita.”
Ailton Gonçalves Desidério
Pastor e Psicólogo
Mestre psicologia Ufrj
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